Há mais de um ano fizemos nossa primeira quarentena. Acreditávamos que depois dos quinze dias tudo voltaria ao normal. Isso seria apenas um começo de outras quarentenas malfeitas. Jamais imaginaríamos passar pelo que estamos passando, pois essas coisas eram mais roteiros de filmes de ficção. Pois bem, a ficção se tornou realidade. A realidade no Brasil escancarou as desigualdades sociais e as desigualdades ideológicas. Muita coisa do cotidiano teve de ser modificada.
Escrevo este texto num momento em que nos aproximamos celeremente de ultrapassar as trezentas mil mortes, sem sequer imaginar aonde essa pandemia poderá chegar. Cheguei a escrever dois textos sobre o mundo pós-pandemia. Não ouso especular mais. Assisto à tal situação, quase anestesiado, depois de tanto estarrecimento, com o negacionismo que, sem dúvida agravou a crise sanitária e tem sido responsável por uma fração, senão a maior, do número de mortes.
Para uma parcela menor da população, foi difícil, mas houve a adaptação para o trabalho e a aprendizagem em casa, atividades que deverão influenciar a vida pós-pandemia. De fato, em casa dou aulas, oriento meus estudantes, dou palestras, participo de bancas, pago minhas contas, faço algumas compras, embora, quase todo dia fico irritado com a qualidade ruim da internet que as concessionárias nos entregam. No entanto, para a maior parte da população que precisou continuar a trabalhar, a precariedade da prestação dos serviços de transporte público ficou evidente. Ficaram mais visíveis as distâncias entre os que têm acesso à internet, o que deixou milhões de crianças sem condições de aprendizagem. Escancararam-se as diferenças entre os serviços médicos públicos e os particulares. Chegamos ao ponto em que nenhum deles dá mais conta da demanda, por mais dinheiro que alguns ainda possuem.
O governo federal se omite das responsabilidades que são dele. Quis nos empurrar medicamentos que a ciência rejeita, criou fakenews para desqualificar as medidas básicas de proteção, trabalha incansavelmente para acirrar o ódio. Age covardemente ao expor e responsabilizar os governadores e prefeitos. Ao mesmo tempo, mais que negligenciar, presta um desserviço aos brasileiros ao confundi-los, ao menosprezar o que a ciência não se cansa de divulgar. Vejo parte da população culpar os prefeitos pelo desemprego, mas a culpa é de alguns líderes políticos e religiosos que estimulam um comportamento rebelde, para o mal, para a desobediência e para a indiferença em relação à pandemia. A mídia vem divulgando festas em boates lotadas, com presença de músicos e de atletas famosos, e de jovens de classe média e alta, que chegam a negar a existência de hospitais lotados. Divulgou também um forró dentro de um vagão de trem, com dezenas de pessoas, na cidade do Rio de Janeiro; uma festa feita em um meio de transporte que usam cotidianamente, sem opção; uma festa que nem é um pedido de socorro, é uma confissão de que os presentes se entregaram unicamente às mãos de Deus, ao expor nossa miséria.