domingo, 18 de junho de 2023

A FÁBULA DO RIO SECO

 Artigo publicado no jornal Folha da Mata, Viçosa-MG, em 15 de junho de 2023

Há muito tempo, ali havia um rio largo e caudaloso, que desfilava suas águas e peixes entre as pedras perigosas. De cada lado do rio havia uma aldeia. Por causa dele, entre as aldeias, os moradores só se conheciam pelos olhares e gestos. Naquela época de fartura, boa parte do sustento dos moradores de cada margem vinha dos peixes e das plantações que dependiam das águas. Plantavam-se mandioca, milho, feijão, banana, batata-doce, araruta, inhame e café. Havia muitas árvores de manga, cabeludinha, tamarindo, abio, uvaia, sapoti, acerola, limão-doce, amora, abacate, lima, pitanga, nêspera, marmelo, goiaba, caju, jabuticaba, graviola. Tinha mamão, pitaia, abacaxi, chuchu, amendoim, abóbora, maracujá, lóbrobó, taioba, couve, serralha, jiló, manjericão, boldo. Criavam-se, dos dois lados, galinhas, patos, perus, porcos, cabras, cavalos, burros e umas vaquinhas. No meio disso tudo, circulavam cães, gatos, gambás, tatus, preás, tucanos, inhambus, seriemas, quero-queros, garças, teiús, maritacas, sabiás, saracuras, araras, canarinhos, bem-te-vis, bacuraus.

Foi quando o rio fora usado para encher a represa da cidade grande, que as coisas começaram a mudar. Os moradores de nada sabiam. O rio diminuiu de largura, os moradores das duas margens começaram a se visitar e crianças já podiam saltar entre as pedras para brincar com os novos amiguinhos. As pessoas se reuniam para contar seus causos, saiu até casamento entre os moradores das duas margens. Eles não se atentaram para o alerta da mudança, viam as águas diminuírem, por causa da sede da cidade grande e, sem se preocuparem muito, deixavam o problema para as mãos de Deus. Os peixes aos poucos foram sumindo e a água não era mais suficiente para manter a vida das tantas plantas e animais. A fome foi chegando aos poucos; começou a disputa por água entre os dois lados, que já não se davam muito bem. Furaram-se poços e os usaram-se mais que produziam de água. Passaram por vários períodos de seca braba. 

O leito do rio praticamente secou. O que separava as aldeias era um fiozinho de água que existia só no período de chuvas. Os moradores ocuparam o leito antes que o vizinho do outro lado o fizesse, deixaram só o cemitério e a igreja nos antigos lugares. Do leito seco tiraram pedras e areia para construção, limpavam o mato, usavam as árvores como lenha, cercavam seus quintais e nele até construíram casas. As coisas pioraram, a fome apertou, a amizade acabou. Uns iam até a outra antiga margem para roubar alimentos, o que resultava em brigas feias. Houve até mortes dos dois lados. Do jeito que ficou, muitos moradores foram embora para a cidade grande.

Um dia, sem mais nem menos, a represa que abastecia a cidade grande rompeu e provocou um dilúvio de lama e pedras que arrancou as duas aldeias do mapa, soterrou as amizades, os conflitos, os documentos, as fotos nas paredes, os namoros, as fofocas, as casas, os quintais, os moradores e as poucas criações que sobravam. Hoje, naquele distante sertão, é possível ver apenas as ruínas das duas igrejinhas, as cruzes e o muro dos cemitérios.


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