Artigo publicado no jornal Folha da mata, Viçosa, 24 março 2022.
Vivemos num país com tantas calamidades, tão fáceis de ver e tão difíceis de justificar. Mais uma vez uma tragédia, agora em Petrópolis, nos castiga com dezenas de mortos e desaparecidos. A tragédia é tamanha que, num mesmo dia, ainda morrem de Covid oito vezes mais pessoas do que em Petrópolis e quase o mesmo número em acidentes de trânsito. Mas, pela forma tão visível e concentrada com que ocorrem, essas tragédias ambientais se tornam as principais manchetes e assuntos, até que novas tomem seus lugares na mídia e nos assuntos do cotidiano.
O que chama atenção é que, depois de cada flagelo, a imprensa mostra os especialistas no assunto para explicarem as causas dos acidentes e o que deveria ter sido feito para evitar. A cada drama isso acontece. A cada chacina, epidemia, deslizamento, enchente, acidente, lá estão os experts mostrando as causas, apontando as soluções. Soluções quase todas muito conhecidas, exaustivamente presentes na agenda da ciência, nas cartilhas das políticas públicas, nas leis, nos artigos científicos, nos jornais e nos planos de governo dos nossos políticos.
Ao trazer o assunto para as nossas cidades, o que há, de fato, é um negacionismo urbano. É só buscar as muitas soluções presentes em cada cidade, no que está escrito na Lei Orgânica (a constituição do município), no plano diretor, no zoneamento, no plano de mobilidade, nos mapas de demarcação das áreas de risco. Inúmeros projetos urbanos foram feitos e não saem do papel. Tudo isso que acontece já está nos pareceres dos técnicos, nos alertas dos especialistas em planejamento urbano, nos alertas dos “ecochatos” e da Defesa Civil, nas instruções técnicas do Corpo de Bombeiros. Todo um aparato legal e todo enorme acervo de base na ciência têm sido ignorados pelos nossos governantes. Esses são os culpados, com a conivência e com a passividade da grande maioria de consumidores, pela negligência, pela sede de poder, pelo poder acima de tudo. Há décadas permite-se a ocupação das margens dos rios, às vezes a construção por cima desses; aí vêm as enchentes, as mortes, os danos materiais, os altos custos de obras de correção (quase sempre paliativas) e o esquecimento posterior até o próximo acidente. Faz-se também vista grossa para as ocupações em terrenos instáveis, insalubres e com alta declividade; aí vêm os deslizamentos, as mortes, os danos materiais, os altos custos de obras de correção (quase sempre paliativas) e o esquecimento posterior até o próximo acidente.
Eventualmente, entre um episódio e outro, são feitos novos (ou mesmo requentados) estudos que rapidamente são apresentados, noticiados, lidos, elogiados pelo teor científico, pela competência dos especialistas, e depois esquecidos. Há campanhas políticas no meio disso tudo, não se podem perder votos com medidas corretivas, não sobra (embora haja muito) dinheiro para medidas a médio e longo prazos. Há, por outro lado, urgência por parte dos desabrigados que restam, em arrumar um cantinho para morar, mesmo que sob o constante medo. Quase sempre voltam para os mesmos lugares arrasados, ou são abandonados para reconstruir suas vidas onde e como puderem, por conta própria, esquecidos pelo Estado, até as próximas eleições. Portanto, outras tragédias virão, mais frequentes e extremas por causa das mudanças climáticas. Tudo isso sustenta um ciclo exaustivamente repetido, uma fonte interminável de manchetes e comoções passageiras, uma irresponsabilidade crônica, uma improbidade sistêmica dos nossos políticos eleitos, que são posturas criminosas.
Isso tudo é inaceitável, para mim, basta!