domingo, 26 de novembro de 2023

O RIBEIRÃO E OS HUMANOS

 


Artigo publicado no jornal Folha da Mata, Viçosa, M em 23 de novembro de 2023.

Sou um pequeno ribeirão em um município que abriga uma cidade média. Ganhei até nome de santo. Cruzo, de sul a norte, toda a cidade. Minhas nascentes estão numa área rural, ao sul do município, as quais vêm perdendo, a cada dia, suas características, devido à multiplicação da instalação de chacreamentos e de condomínios irregulares. Com isso, muito já fui muito desmatado, já tive muita terra tirada do lugar. Fico magro e raso, assoreado, invadido nas minhas margens. Isso tudo prejudicou a minha produção de água. Ainda bem que há alguns movimentos para me protegerem. Uns grupos “plantam” água, outros constroem barraginhas para segurar as enxurradas. Alguns humanos estão tentando terminar o plano de manejo, que se arrasta há décadas. Essa lentidão me preocupa. Por algumas vezes, por causa da mudança climática e das intervenções humanas, quase sequei. Começo, desde cedo a receber esgotos dos humanos. 

Chego a um campus universitário e sou represado por cinco vezes. Acho que fico bem com represas bonitas, melhoro bastante o meu astral. Os humanos também adoram caminhar em volta de mim, tiram fotos parecem se divertir. Só que, na segunda represa, sugam minha água para duas estações de tratamento de água. Mato a sede dos humanos no Campus e de parte dos humanos da cidade. Já fui muito mais robusto, produtivo, mas aos poucos venho perdendo vigor. Crio com orgulho, nessas lagoas, peixes, garças, saracuras, capivaras, martins-pescadores, jacus, garças, sabiás, bem-te-vis e até jacarés. Só que minhas águas não são mais saudáveis, tanto é que não deixam mais os humanos pescarem. 

Sigo em frente, caio num enorme sifão, mergulho na escuridão, entubado, sufocado, por duas vezes, até ressurgir, cercado de prédios muito próximos e injetado por canos que me despejam esgotos e águas dos telhados. Os humanos cimentam seus quintais e calçadas, asfaltam suas ruas e, quando chove, reclamam que não dou conta de escoar as águas. Recebo as águas sujas de alguns córregos sofridos. Sofro assim, por mais de quatro quilômetros, sujo, cheio de entulho, de sofás, de bananeiras, de galhos e de todo tipo de plástico. Fico quase morto, imundo, sufocado, sem peixes, carregado de bactérias do mal. Depois disso tudo, junto-me, próximo a aterros e bota-foras, ao ribeirão Turvo Sujo, que, bastante sugado para matar a sede do resto da cidade, vem carregado dos resíduos da humanidade. 

Dessa forma, contribuo, não com a qualidade das águas de que gostaria, para o rio Piranga, que lá perto de Ponte Nova se junta ao rio Carmo e se torna o grandioso e machucado Rio Doce. Peço mais atenção, mais cuidados comigo e com os meus receptores. Peço socorro enquanto ainda há tempo. Quero mais árvores e arbustos me acompanhando, quero mais frutas, peixes, sapos, aves, lagartos, cobras, capivaras. Assim, posso conviver com os humanos e continuar produzindo água e como generoso que sou, posso doar, sem me comprometer, parte da minha vitalidade. Como recebi o nome do padroeiro dos padeiros, alfaiates, sapateiros, açougueiros e comerciantes em geral, quero-os felizes, saudáveis e prósperos, assim como todos aqueles que precisam de que esses existam.


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