Texto publicado no jornal Tribuna Livre, Viçosa, em 11/12/2014, a partir de outro publicado no jornal Panorama, Juiz de Fora, em 15 /12/2003
Tenho, de minha casa, uma visão muito ampla e bonita da cidade, com quase 270 graus de visão panorâmica. À noite, é ainda mais bela: veem-se luzes de várias intensidades e dispostas em variados desenhos. De longe, parece um conjunto organizado e harmônico. O primeiro plano é da área central, onde, como privilegiado moro. É uma área viva, animada, uma mistura saudável de usos. Há muitos prédios de vários pavimentos, as ruas são asfaltadas e as calçadas contínuas e acessíveis. Há pequenas praças e ruas com canteiros centrais, muito bem cuidados. Observa-se uma iluminação eficiente nas ruas, o que passa uma sensação de segurança aos inúmeros pedestres que vão para casa, para os que saem das escolas, dos cinemas ou dirigem-se aos bares.
Mais ao longe, lá no alto dos morros que circundam o centro, pode-se observar casas, quase todas ainda com sua alvenaria aparente. Ha manhas de vegetação, por vezes cobrindo um terreno inclinado demais para suportar uma construção. Cada uma dessas casas apresenta pontos de luz pálidos, que, somadas às outras, forma uma silhueta trêmula à noite. De lá, seus moradores têm uma bela vista. Mas têm mais dificuldades e problemas que os moradores mais privilegiados do centro. Não se pode dizer que a qualidade das vias, calçadas, iluminação e de suas próprias residências é tão boa quanto a da área central. Nem sempre é fácil alcançar o ponto de ônibus, nem sempre lá chegam com facilidade o caminhão da coleta de lixo, o caminhão de entrega de gás, uma viatura policial ou uma ambulância, quando mais se precisa. Nem sempre se pode ir a busca de atendimento médico, escola, creche ou ir à uma atividade de lazer ou de cultura. As limitações impostas pela idade, pelas necessidades físicas especiais, ou pelas financeiras, cerceiam das pessoas o direito de ir e vir, de viver plenamente a cidadania.
Um vento forte, um temporal, uma seca prolongada, uma chuva de granizo ou um sol a pino têm efeitos muito diferentes nesta parte da cidade. Enquanto uma assiste aos fenômenos meteorológicos de forma segura e confortável, pois sabe que vai passar; a outra se preocupa, fica sem água, sem energia elétrica, sem acesso por vários dias. Seus moradores às vezes adoecem, às vezes entram em pânico, às vezes têm a vida transformada por tragédias que não atingem os de cá.
Os de cá e os de lá moram na mesma cidade, embora vivam em realidades diferentes. Os de cá podem até se importar com o que acontece com os de lá, mas não trocariam de lugar. Nesta cidade, e em milhares de outras neste país, há esta divisão silenciosa, esta segregação perversa. Às vezes alguns dos cidadãos até escolhem se isolar nas áreas distantes, fecham-se em muros medievais, levam consigo e seus familiares os gastos públicos da construção de uma infraestrutura de vias, iluminação e saneamento; instalam eficientes sistemas de segurança; chegam e saem de lá com seus automóveis blindados. Atraem, para perto deles, mas fora de seus muros, bares, restaurantes, academias de ginástica e até shopping centers. Para isso, se precisar, expulsam os antigos moradores para longe, longe dos que mandam e os que consomem, longe ainda mais da cidadania. Dessa forma, longe até da nossa vista, esquecemo-nos deles, pelo menos até que alguns de nós precisemos de seus votos. Quem pode mudar essa situação? Quem quer mudar essa situação? Certamente não são os do lado de cá.
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