14 fevereiro 2020

A FÁBULA DE QUALQUERLÂNDIA


Uma das minhas fábulas do livro "Fábulas urbanas e outras lições sobre as cidades", publicado em 2019.

Qualquerlândia era uma cidade pequena, espremida entre muitas montanhas, num lugar quase esquecido pelo mundo, mas importante para alguns políticos, os de lá da capital do estado e os de lá da capital do país. Quem mandava na cidade não era o prefeito, pois a cada hora havia um. Quem mandava eram os grandes fabricantes de caixotes, pois caixotes serviam para guardar coisas e guardar coisas era coisa muito importante. Então, quanto mais caixotes melhor. Os fabricantes descobriram que ganhavam mais dinheiro fabricando caixotes cada vez menores, mas em quantidade cada vez maior.

Em Qualquerlândia, também tinha uma fábrica de sábios.  Muitos sábios eram ali produzidos, mas quase nenhum ficava na cidade, pois ali não parecia ser lugar para sábios ficarem. Enquanto se fabricavam os sábios, os que ainda não eram sábios precisavam guardar seus livros e coisas nos caixotes por algum tempo. Não importava muito a qualidade dos caixotes, pois um dia, os sábios  iriam embora. Aos poucos, os caixotes foram sendo empilhados, até em cima dos leitos dos riozinhos. Não tinha problema; há muito tempo o riozinho não enchia até ali. Se precisassem, os fabricantes chegavam o riozinho para lá. Quando o vale encheu de caixotes, colocaram mais caixotes até o topo dos morros. Se precisasse, tiravam-se os morros. Tinha tanto morro que mais um menos um, não tinha problema. Tinha tanta árvore que remover algumas dezenas não era problema.

Havia alguns dos fabricantes de sábios, menos sábios, menos sabidos até, que ali insistiam em ficar e azucrinar os fabricantes de caixotes que ocupavam tudo, desde as margens dos riozinhos aos topos dos morros. Aqueles queriam organizar o empilhamento de caixotes e impedir que os caixotes mais antigos, amplos e bonitos fossem destruídos. Os fabricantes sempre queriam pilhas maiores e ficavam muito brabos quando os sábios queriam disciplinar a cidade e alertar que não era possível guardar caixotes daquele jeito. Os prefeitos da ocasião, ainda menos sábios, apoiavam os fabricantes de caixotes e concordavam quando estes, os seus apoiadores, chamavam de cabeças de bagre ou até de marcianos os fabricantes de sábios.

Os fabricantes estavam muito satisfeitos, vendendo caixotes com nomes bonitos, (de preferência nomes que juntassem palavras francesas ou inglesas com outras que fizessem referência à sustentabilidade), vendendo até mesmo para alguns fabricantes de sábios, que não davam importância ao assunto. Pregavam aos quatro cantos que fabricar caixotes criava muitos empregos, e ameaçavam dizendo que, se não pudessem aumentar as pilhas, iriam embora fabricar caixotes em outro lugar. Mas também sabiam que, em outro lugar, não iriam vender tantos caixotes e a preços tão elevados.

E lá ficavam, fabricando mais e mais caixotes. Sabiam que, quando seus próprios caixotes enchessem de dinheiro, iriam embora de Qualquerlândia, deixando-a ao deus-dará e à mercê dos fabricantes de sábios, que não saberiam onde eles e os futuros sábios a serem fabricados colocariam mais suas coisas importantes. Eram tantos caixotes empilhados, tão próximos uns dos outros, que não se chegava mais até eles. Mas todos sabiam que um dia, os caixotes, úmidos, mofados e muitos vazios, desabariam, ficariam inacessíveis ou seriam engolidos pela raiva dos riozinhos que se cansariam de serem estrangulados.

Era apenas uma questão de tempo.


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